sexta-feira, 11 de março de 2011

Salto Mortal


Quem tem um mínimo de interesse por literatura com homossexuais como personagens principais já ouviu falar, em algum momento, do livro O Terceiro Travesseiro, de Nelson Luiz de Carvalho. Certa vez ouvi até mesmo dizerem que esse seria um livro obrigatório para um gay brasileiro, seria como Shakespeare da literatura LGBT nacional. Exageros à parte, é sim um boa história. À época em que o li, emocionei-me bastante (o livro com o qual mais chorei até hoje), ao mesmo tempo em que fiquei chocado com algumas situações e me vi confrontado com meus próprios preconceitos. Está muito longe de ser um excelente livro e unânime, contudo, a comunidade no Orkut tem mais de 5.500 membros.
Entretanto, este post não é para falar do travesseiro extra. Quis apenas começar com uma comparação. Se a quantidade de leitores representasse qualidade, eu nunca faria um post sobre um livro que atualmente, na mesma rede social, tem uma comunidade com apenas 10 membros.

Falo de SALTO MORTAL (The Catch Trap), da escritora estadunidense Marion Zimmer Bradley (1930-1999), mais conhecida pelas séries As Brumas de Avalon e Darkover. Foi esse livro sobre trapezistas que me inspirou a voltar a escrever no blog, e creio que posso considerar um dos melhores que já li na vida. Talvez, o melhor.


A falta de reconhecimento não é à toa. Trata-se de um livro que não foi divulgado. Praticamente não existem informações sobre o processo de escrita. O que pude encontrar de informações está basicamente neste site (clique AQUI).
Traduzo livremente e resumo: Salto Mortal teria sido escrito, ou pelo menos a primeira parte, em 1948 (a escritora tinha apenas 18 anos, mas parece-me que aos 16 já havia escrito A Espada Encantada, da série Darkover), porém somente foi publicado em 1979, chegando ao Brasil 20 anos depois, pelo selo Bertrand – aparentemente em uma única edição, o que se reflete na dificuldade de encontrar exemplares hoje em dia e no alto custo (por volta de R$80). A demora para lançá-lo nos EUA deve-se ao fato do tema ser bastante polêmico naquele período, quando homossexuais poderiam até mesmo ser presos por se relacionarem com outros homens.
O título original seria The Flyers (Os Voadores), entretanto, o editor achou que soava como uma história relacionada a aeroportos. Assim, mudou o título para o que conhecemos – The Catch Trap (é o nome dado à barra do trapezista-base). Interessante que “catch” significa “pegar, agarrar”, e “trap”, laço do qual não é possível escapar, além de ser uma referência à própria arte: trap(eze). Eu, particularmente, adoro o título da versão brasileira também.
Além disto, o que consegui de informações foi: esse é considerado pela família da Marion seu melhor e mais perfeito livro; e, aparentemente, o livro só teria sido lançado nos Estados Unidos, Inglaterra, Portugal e Brasil, mas existe uma versão em alemão também (Trapez). Creio que não tenha sido lançado em outras línguas, mas por falta de fontes confiáveis, não posso confirmar nada.


Mas afinal, do que tratam as 896 páginas do livro?

A história de amor entre dois trapezistas (homens), em uma época em que a homossexualidade era (muito mais) considerada uma doença e pecado. A saga de cinco gerações de uma família em torno do trapézio, com toda sua união, tradição, disciplina, dores e perdas. Um romance que tem o circo como cenário, com profissionais marginalizados, mas, ainda assim, dedicados a levar o melhor de sua arte ao público.
Resumir o livro como uma história gay é quase uma mutilação. O personagem principal é Tommy Zane, seguido de Mario Santelli. Ou até mesmo poderia ser um casal heterossexual qualquer. Contudo, o protagonista é o trapézio – o coração do livro, o que une (ou afasta) os personagens. É no alto da plataforma onde a ligação acontece, quase como uma relação sexual, segundo a autora.
Os dez anos (boa parte da década de 1940 e começo da década de 1950) e o local (colecionar coisas relacionadas ao circo sempre foi um hobbie para Marion) em que a história é destrinchada dão o tom à história. A família de trapezistas – Os Santelli Voadores – e a de Tommy, cujo pai é domador de leões, trabalham no mesmo circo, de segunda qualidade, onde todos são considerados “diferentes” apenas pelo ofício nômade. [E o engraçado é perceber a hipocrisia ao sentirem-se superiores aos saltimbancos.]
Tommy Zane (ou Tom), cujo olhar Marion privilegia, é um jovem de 14 anos que sempre sonhou em voar. Tem um coração puro e bondoso (a ponto de não guardar mágoas nem mesmo das piores humilhações), desde sempre é responsável, profissional, “adulto” e disposto a se doar por quem ama. Ele vê em Mario Santelli (ou Matt), no início do livro com 20 anos, um ídolo, um modelo e, com o tempo, um amor.
Matt é temperamental e costuma ser explosivo, difícil de lidar em alguns momentos. Contudo, tudo não passa do reflexo de problemas emocionais internos, e somente no final do livro conseguirá descobrir a solução e se livrar deles. Ele acolhe Tom a princípio como um irmão mais novo, um pupilo. E quando um sentimento maior começa a despertar e a se tornar ações, ao mesmo tempo em que ele deseja Tommy, sente-se culpado.
Alguns criticam a autora por uma possível incitação à pedofilia, já que Tommy tem sua primeira relação com Matt muito jovem. Os mais fanáticos utilizam inclusive a condenação judicial do ex-marido dela por pedofilia como “prova” de sua inclinação doentia. Uma total bobagem. Primeiro, porque não devemos avaliar a obra pela vida do autor. Segundo, porque eu desafio qualquer um que leu o livro a condenar Matt por suas ações. Tommy em nenhum momento foi levado a fazer o que não queria, inclusive ele poderia tê-lo acusado ou se afastado. E, por fim, creio que Marion quis reforçar a questão de mentor/pupilo, em uma sinergia tão profunda e forte que se torna emocional. Algumas vezes, inclusive, os gregos são citados na obra, já que jovens da Grécia Antiga ficavam com homens mais velhos para ter um modelo de bravura e virilidade. Um desonrar ao outro seria algo impensável. Creio que esta é a ligação estabelecida pela autora.

Polêmicas à parte, é um livro espetacular que nos transporta para o universo circense e nos traz imagens nítidas até mesmo dos mais complicados movimentos do trapézio. A tensão a cada voo, a cada salto mortal (o salto triplo na época era pouco realizado, e matou ou feriu a muitos) se torna física no leitor.
Os personagens são de uma complexidade ímpar. Envolvemo-nos com cada um deles. Mesmo ocultos, passamos a fazer parte da família Santelli e a respeitar a tradição que os tornou os melhores voadores.
Durante e após a 2ª Guerra Mundial, em uma época em que o impossível começava a ser questionado (a televisão acabaria com o espetáculo circense ao vivo? O homem algum dia pisaria na lua?), Matt desafiava a gravidade e buscava ser o terceiro homem a fazer o salto triplo. No alto do trapézio seu pescoço estava em jogo, e desde sempre ele e Tommy perceberam que qualquer problema deveria ser deixado do lado de fora da plataforma. A única promessa eternamente cumprida.
Ambos também desafiavam as regras da moral e do pudor da época ao ficarem juntos. O amor deles era enorme, mas a devoção de um ao outro, maior ainda, era inquebrável. Por isso não é apenas um romance. Muito mais que sexo e beijos escondidos, eles eram mais do que a soma das partes, eles formavam um único ser no picadeiro – um mesmo coração.
O livro não é perfeito (algum é?), há algumas frases repetidas que costumam incomodar o leitor, e a tradução contém alguns erros de gramática. Há quem diga que o livro é muito extenso e várias páginas poderiam ser cortadas sem fazer falta. Eu discordo. Nunca 900 páginas me pareceram tão pouco. O livro aborda muito da rotina do trapézio e essa sensação só poderia ser transmitida através da constância de algumas situações. E mesmo que o final seja um pouco previsível, é impossível não se sentir tocado e mexido com essa leitura. Ao final do livro, talvez uma má impressão (assim como a má sorte) seja melhor do que nenhuma.


A leitura do livro pode trazer inúmeras questões a debate e muitas lições podem ser apreendidas. Quanto à homossexualidade, vivemos em uma época bem mais permissiva e menos discriminatória (o preconceito, porém, ainda está enraizado). Contudo, o livro nos leva a refletir sobre questões que nunca mudam: a descoberta da sexualidade, aceitação (pessoal e por parte dos outros), e a vida “no armário” ou fora dele e todas as suas consequências.
Um texto do Teddy Pig (leia AQUI) exalta alguns pontos interessantes, então traduzo abaixo. Algumas das lições são:
- Somente porque você se apaixona por uma pessoa mais velha não significa que a idade vai, automaticamente, tornar o outro o mais maduro das duas partes envolvidas;
- Violência, eventualmente, irá destruir qualquer relacionamento e mais provavelmente sua vida;
- Sexualidade deve ser uma extensão de sua vida e não o foco dela;
- Somente porque você pode ter relações sexuais com uma mulher não significa que você deveria, e ter um filho não faz de você um heterossexual;
- Não importa o quão desesperada e dolorosa a vida se torna porque você é honesto sobre sua sexualidade e sobre quem você é, aceite que você irá sobreviver e ser melhor por causa disso.

Quer ter uma boa leitura (seja você hétero ou gay) ou quer ler um livro especificamente com personagens homossexuais?
O Terceiro Travesseiro? É bom.
Salto Mortal? É indispensável!
Na literatura LGBT eu já encontrei meu Shakespeare, meu Os Lusíadas, meu Cien Años de Soledad. E é tão mais do que isso, que não cabe não no rótulo “gay”. Fora a Bíblia, até agora não li nada tão especial como Salto Mortal. E fico triste ao saber que poucos tiveram o prazer de lê-lo, privilegiando livros tão inferiores, como O Terceiro Travesseiro, que, como me disse um amigo, se torna quase um livro pornô comparado ao Salto.

É... acho que é o meu livro favorito mesmo.

Observações
- Você pode fazer o download da versão doc do livro em português de Portugal AQUI.
- Agradecimento especial: ao meu amigo João Lucas, do blog Got Trouble, quem me apresentou essa incrível história. Obrigado!

10 comentários:

  1. Brunão, parabéns pelo post e pela resenha! Você falou tudo o que merece ser ressaltado sobre essa maravilhosa obra. Vou usar seu texto pra divulgar =]~ Abraços

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  2. Para quem aprecia uma boa literatura, da qual sem dúvida Marion Bradley Zimmer faz parte, Salto Mortal é um dos livros mais bem estruturados e complexos que eu pude ler...
    Os personagens saltam no livro e do livro, justamente porque se compõem da matéria que formam os seres humanos reais, que são as emoções e os sentimentos... longe de se perder em descrições pormenorizadas, a autora enriquece a leitura com as tramas sutis e acontecimentos cotidianos que por si só permitem que se construa na mente uma verdadeira materilização do personagem.
    Para quem espera um apanágio à homossexualidade, recomendo que leia o livro com cautela, pois se trata de uma história de amor e acima de tudo, de despreendimento.
    Invariavelmente o ser humando se utiliza das diferenças, não somente no campo da 'escolha sexual' quanto de raça, ou religião, para desmerecer ou desvalorizar aquilo que no fundo não compreende. O livro pelo contrário, descortina as consequências de uma relação amorosa, que se sustenta não apenas no sentir emocional, mas no sentir físico e supera as expectativas, pois aprofunda-se tanto na reflexão psicológica, que não somente confere prazer ao leitor, mas uma verdadeira sensação de pertencimento à história.
    Quem dera houvesse mais histórias assim, que demonstrassem com sabedoria, o além da forma e o verdadeiro contéudo do amor...

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  3. Bruno , parabéns pelo Blog.
    Acabei de ler esse livro ontem (comecei no sábado retrasado), num misto de vontade louca de devorar as páginas e ao mesmo tempo não querer que acabasse para não me separar dos personagens, como o Lucas colocou, é muito forte a sensação de pertencimento à história.
    A autora é genial, já era fã dela desde As Brumas de Avalon. E o livro realmente é genial na visao gay dos personagens, com um respeito e sensibilidade perfeitos, ainda mais que, eplo que eu saiba a autora não era homo nem bi. E mais, o livro, se não me engano, foi escrito em 1958, apesar de só publicado nos anos 70. O respeito que impregna todo o livro é mais atual que nunca. O clima épica da Família Santelli, o casal Matt (Mario) e Tommy, (que faz ter vontade de ter um relacionamento sério de novo), o mundo do circo e, uma visão apaixonante do mundo do trapézio...que dá vontade de ir no circo de novo.

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  4. Salto Mortal, um livro absoluto. Assim o amor vale. Assim a partilha com o outro é total, séria e profunda. Acabei de ler o livro e sinto-me totalmente arrebatado. Um livro cuja história se apodera de nós. Mário e Tommy. Sublime amor. Não esquecerei nunca este belo livro. Sinto que Mário e Tommy me vão sempre acompanhar.
    Como eu gostaria de amar e ser amado desta forma...

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  5. OI, Bruno!
    Boa madrugada ^______^


    Querido, sou leitora de literatura homoerótica masculina, de romances gay/MM, de Yaoi/Boys Love... Enfim.

    Desde o início de idade adulta AMO ver dois rapazes juntos - e também se pegando - e, num caso de torcer para qualquer casal ser feliz, sempre estive a favor do casal gay.

    Sou hetero e infelizmente, não vejo muitos atrativos em romances hetero. Como leio estes romances desde os 12 anos - hoje tenho 38 - acredito que posso analisar e dizer que, com raras exceções, seja de roteiro ou de personagens, os romances gays/homoeróticos masculinos / MM/ Yaoi/Boys Love, são muito mais emocionantes, emotivos e deliciosos.

    Sim, O Terceiro Travesseiro é um dos meus favoritos. Mas sim, ele também não é o único ^~

    Escrevo contos Yaois/Boys Love desde 1998. Desde 2004 sou Beta e faço copidesque para 06 autoras nacionais. Dentre elas, 03 já tiveram seus Contos selecionados para os volumes Vermelho, Amarelo e Laranja, da coletânea Fantástica Literatura Queer, da Tarja Editorial, com orgulho. Com mais orgulho ainda, tenho 02 autoras que estão escrevendo livros; 01 delas está escrevendo uma trilogia e já estamos no 02 vol.

    Assisti a todos as séries Yaoi/Boys Love já lançadas no japão, legendadas ou não. E as tenho, lógico.

    Quanto à produção nacional, tenho ainda pouquíssimos livros, mas são estrelas em minha estante: Porque eu Pequei, Rendição, Cama King-Size & Dominação, O Terceiro Travesseiro, Xeque-Mate, História da Noite, os volumes da Coletânea da Tarja e só, infelizmente. Ainda nos nacionais, estou correndo atrás do livro Amor Invertido, Madjanek, Águas Negras e outros.

    Quanto aos estrangeiros, possuo os DIVINOS O Menino Persa e Fogo do Ceu, de Mary Renault - repito: DIVINOS. Tenho as séries Os Instrumentos Mortais, de Cassandra Clare (o casal secundário é gay) e Nightshade, de Andrea Cremmer (o casal secundário também é gay) que surpreendem por se tratarem de séries voltadas a um público novo e que recebeu os casais gays de braços abertos.
    Ainda nos estrangeiros, estou procurando desesperadamente O Pacifista, de Jhon Boyne e Lover At Last, 11º vol da série Irmandade da Adaga Negra, completamente voltado ao casal gay de IAN.

    E agora... deixe-me dizer que ME APAIXONEI DE CORAÇÃO por Tommy e Mário *______________________*

    Eu realmente NÃO FAZIA IDEIA que Zimmer havia escrito um romance gay. REalmente, esta foi a minha GRANDE surpresa da madrugada... Melhor dizer do mês, meu amigo!

    Meu coração foi tão tocado que estou até agora com um sorriso enooooorme no rosto e o coração batendo, entusiasmado.

    Não tenho palavras para lhe agradecer por ter me apresentado aos dois e sua história *.*

    Vou divulgar esta página para a responsável pelo Byme, o maior site sobre Yaoi/Boys Love do país. As fãs necessitam saber que este livro existe.

    E eu o quero!! QUERO MUITISSIMO!!! Por favor, Bruno... Você saberia indicar algum site que eu pudesse adquirí-lo, fosse por compra ou mediante troca de livros?

    Porque eu PRECISO dele, pois quero apaixonar-me pela paixão e amor dos dois!

    Qualquer ajuda lhe serei extremamente grata, obrigada!

    Desejo-lhe tudo de bom o/

    Illy

    Illyana HimuraWakai
    illyana.himura@gmail.com
    @IllychanHimuraW
    http://www.facebook.com/illychan.himurawakai
    http://www.entropiacomic.com.br/
    http://www.fanfiction.net/u/554504/Illy_chan_H_Wakai

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  6. Estou lendo atualmente este livro e fico o dia todo pensando nele quando não posso lê-lo. Mas não gostei de O terceiro travesseiro. Confesso q não terminei, mas eu comecei com todo entusiasmo, aliás era o meu primeiro livro do tema, mas me decepcionei grandemente com algumas coisas do livro. Pra mim a falta de escritores no tema deu esse impulso ao livro, mérito que deveria ser dado ao livro da Marion.

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  7. Me apaixonei por Salto Mortal, a historia eh tocante, sem dúvida um dos meus livros favoritos!

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  8. Adorei o livro. Mas achei muito pouco. O que será que acontece depois? Eles contam para a família? A autora podia ter feito uma continuação. Mas esse é o melhor livro que já li até hoje. Melhores personagens.

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  9. This is my favorite book!

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  10. Gostei muito da resenha e principalmente dos ensinamentos do Teddy Pig, faço suas as minhas palavras, realmente é um livro incrível e merece ser conhecido,lido, apreciado e adaptado para outras artes. Fica aqui minha sugestões aos livros As Furías Invisíveis do Coração e o Pacifista, duas histórias do autor John Boyne e que merecem ser lidas. Boa leitura.

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