terça-feira, 29 de março de 2011
Ah, o Amor! [1/10]
sexta-feira, 11 de março de 2011
Salto Mortal
Entretanto, este post não é para falar do travesseiro extra. Quis apenas começar com uma comparação. Se a quantidade de leitores representasse qualidade, eu nunca faria um post sobre um livro que atualmente, na mesma rede social, tem uma comunidade com apenas 10 membros.
A falta de reconhecimento não é à toa. Trata-se de um livro que não foi divulgado. Praticamente não existem informações sobre o processo de escrita. O que pude encontrar de informações está basicamente neste site (clique AQUI).
Traduzo livremente e resumo: Salto Mortal teria sido escrito, ou pelo menos a primeira parte, em 1948 (a escritora tinha apenas 18 anos, mas parece-me que aos 16 já havia escrito A Espada Encantada, da série Darkover), porém somente foi publicado em 1979, chegando ao Brasil 20 anos depois, pelo selo Bertrand – aparentemente em uma única edição, o que se reflete na dificuldade de encontrar exemplares hoje em dia e no alto custo (por volta de R$80). A demora para lançá-lo nos EUA deve-se ao fato do tema ser bastante polêmico naquele período, quando homossexuais poderiam até mesmo ser presos por se relacionarem com outros homens.
O título original seria The Flyers (Os Voadores), entretanto, o editor achou que soava como uma história relacionada a aeroportos. Assim, mudou o título para o que conhecemos – The Catch Trap (é o nome dado à barra do trapezista-base). Interessante que “catch” significa “pegar, agarrar”, e “trap”, laço do qual não é possível escapar, além de ser uma referência à própria arte: trap(eze). Eu, particularmente, adoro o título da versão brasileira também.
Além disto, o que consegui de informações foi: esse é considerado pela família da Marion seu melhor e mais perfeito livro; e, aparentemente, o livro só teria sido lançado nos Estados Unidos, Inglaterra, Portugal e Brasil, mas existe uma versão em alemão também (Trapez). Creio que não tenha sido lançado em outras línguas, mas por falta de fontes confiáveis, não posso confirmar nada.
Mas afinal, do que tratam as 896 páginas do livro?
A história de amor entre dois trapezistas (homens), em uma época em que a homossexualidade era (muito mais) considerada uma doença e pecado. A saga de cinco gerações de uma família em torno do trapézio, com toda sua união, tradição, disciplina, dores e perdas. Um romance que tem o circo como cenário, com profissionais marginalizados, mas, ainda assim, dedicados a levar o melhor de sua arte ao público.
Resumir o livro como uma história gay é quase uma mutilação. O personagem principal é Tommy Zane, seguido de Mario Santelli. Ou até mesmo poderia ser um casal heterossexual qualquer. Contudo, o protagonista é o trapézio – o coração do livro, o que une (ou afasta) os personagens. É no alto da plataforma onde a ligação acontece, quase como uma relação sexual, segundo a autora.
Os dez anos (boa parte da década de 1940 e começo da década de 1950) e o local (colecionar coisas relacionadas ao circo sempre foi um hobbie para Marion) em que a história é destrinchada dão o tom à história. A família de trapezistas – Os Santelli Voadores – e a de Tommy, cujo pai é domador de leões, trabalham no mesmo circo, de segunda qualidade, onde todos são considerados “diferentes” apenas pelo ofício nômade. [E o engraçado é perceber a hipocrisia ao sentirem-se superiores aos saltimbancos.]
Tommy Zane (ou Tom), cujo olhar Marion privilegia, é um jovem de 14 anos que sempre sonhou em voar. Tem um coração puro e bondoso (a ponto de não guardar mágoas nem mesmo das piores humilhações), desde sempre é responsável, profissional, “adulto” e disposto a se doar por quem ama. Ele vê em Mario Santelli (ou Matt), no início do livro com 20 anos, um ídolo, um modelo e, com o tempo, um amor.
Matt é temperamental e costuma ser explosivo, difícil de lidar em alguns momentos. Contudo, tudo não passa do reflexo de problemas emocionais internos, e somente no final do livro conseguirá descobrir a solução e se livrar deles. Ele acolhe Tom a princípio como um irmão mais novo, um pupilo. E quando um sentimento maior começa a despertar e a se tornar ações, ao mesmo tempo em que ele deseja Tommy, sente-se culpado.
Alguns criticam a autora por uma possível incitação à pedofilia, já que Tommy tem sua primeira relação com Matt muito jovem. Os mais fanáticos utilizam inclusive a condenação judicial do ex-marido dela por pedofilia como “prova” de sua inclinação doentia. Uma total bobagem. Primeiro, porque não devemos avaliar a obra pela vida do autor. Segundo, porque eu desafio qualquer um que leu o livro a condenar Matt por suas ações. Tommy em nenhum momento foi levado a fazer o que não queria, inclusive ele poderia tê-lo acusado ou se afastado. E, por fim, creio que Marion quis reforçar a questão de mentor/pupilo, em uma sinergia tão profunda e forte que se torna emocional. Algumas vezes, inclusive, os gregos são citados na obra, já que jovens da Grécia Antiga ficavam com homens mais velhos para ter um modelo de bravura e virilidade. Um desonrar ao outro seria algo impensável. Creio que esta é a ligação estabelecida pela autora.
Polêmicas à parte, é um livro espetacular que nos transporta para o universo circense e nos traz imagens nítidas até mesmo dos mais complicados movimentos do trapézio. A tensão a cada voo, a cada salto mortal (o salto triplo na época era pouco realizado, e matou ou feriu a muitos) se torna física no leitor.
Os personagens são de uma complexidade ímpar. Envolvemo-nos com cada um deles. Mesmo ocultos, passamos a fazer parte da família Santelli e a respeitar a tradição que os tornou os melhores voadores.
Durante e após a 2ª Guerra Mundial, em uma época em que o impossível começava a ser questionado (a televisão acabaria com o espetáculo circense ao vivo? O homem algum dia pisaria na lua?), Matt desafiava a gravidade e buscava ser o terceiro homem a fazer o salto triplo. No alto do trapézio seu pescoço estava em jogo, e desde sempre ele e Tommy perceberam que qualquer problema deveria ser deixado do lado de fora da plataforma. A única promessa eternamente cumprida.
Ambos também desafiavam as regras da moral e do pudor da época ao ficarem juntos. O amor deles era enorme, mas a devoção de um ao outro, maior ainda, era inquebrável. Por isso não é apenas um romance. Muito mais que sexo e beijos escondidos, eles eram mais do que a soma das partes, eles formavam um único ser no picadeiro – um mesmo coração.
O livro não é perfeito (algum é?), há algumas frases repetidas que costumam incomodar o leitor, e a tradução contém alguns erros de gramática. Há quem diga que o livro é muito extenso e várias páginas poderiam ser cortadas sem fazer falta. Eu discordo. Nunca 900 páginas me pareceram tão pouco. O livro aborda muito da rotina do trapézio e essa sensação só poderia ser transmitida através da constância de algumas situações. E mesmo que o final seja um pouco previsível, é impossível não se sentir tocado e mexido com essa leitura. Ao final do livro, talvez uma má impressão (assim como a má sorte) seja melhor do que nenhuma.
A leitura do livro pode trazer inúmeras questões a debate e muitas lições podem ser apreendidas. Quanto à homossexualidade, vivemos em uma época bem mais permissiva e menos discriminatória (o preconceito, porém, ainda está enraizado). Contudo, o livro nos leva a refletir sobre questões que nunca mudam: a descoberta da sexualidade, aceitação (pessoal e por parte dos outros), e a vida “no armário” ou fora dele e todas as suas consequências.
Um texto do Teddy Pig (leia AQUI) exalta alguns pontos interessantes, então traduzo abaixo. Algumas das lições são:
- Somente porque você se apaixona por uma pessoa mais velha não significa que a idade vai, automaticamente, tornar o outro o mais maduro das duas partes envolvidas;
- Violência, eventualmente, irá destruir qualquer relacionamento e mais provavelmente sua vida;
- Sexualidade deve ser uma extensão de sua vida e não o foco dela;
- Somente porque você pode ter relações sexuais com uma mulher não significa que você deveria, e ter um filho não faz de você um heterossexual;
- Não importa o quão desesperada e dolorosa a vida se torna porque você é honesto sobre sua sexualidade e sobre quem você é, aceite que você irá sobreviver e ser melhor por causa disso.
Quer ter uma boa leitura (seja você hétero ou gay) ou quer ler um livro especificamente com personagens homossexuais?
O Terceiro Travesseiro? É bom.
Salto Mortal? É indispensável!
Na literatura LGBT eu já encontrei meu Shakespeare, meu Os Lusíadas, meu Cien Años de Soledad. E é tão mais do que isso, que não cabe não no rótulo “gay”. Fora a Bíblia, até agora não li nada tão especial como Salto Mortal. E fico triste ao saber que poucos tiveram o prazer de lê-lo, privilegiando livros tão inferiores, como O Terceiro Travesseiro, que, como me disse um amigo, se torna quase um livro pornô comparado ao Salto.
É... acho que é o meu livro favorito mesmo.
Observações
- Você pode fazer o download da versão doc do livro em português de Portugal AQUI.
- Agradecimento especial: ao meu amigo João Lucas, do blog Got Trouble, quem me apresentou essa incrível história. Obrigado!